sábado, 30 de janeiro de 2010

O PECADO E GRAÇA NA PERSPECTIVA AGOSTINIANA


Há certa analogia interna entre as controvérsias trinitárias e cristólgcias, que grassaram no Oriente durante séculos IV e V, de um lado, e de outro lado, a controvérsia pelagiana no Ocidente no século V. Ambas giravam em torno da mesma questão: Que constitui a base para a salvação? Após o repúdio do arianismo e das heresias monarquianas, os argumentos seguintes se evidenciaram: Se Cristo não é verdadeiro Deus, não pode salvar os homens; se não é verdadeiro Deus e verdadeiro homem em uma pessoa, não pode libertar o homem do domínio do pecado e da morte. De maneira semelhante, agostinho afirmou, em oposição a Pelágio, que a salvação é obra do próprio Deus; não é de origem humana. Numa controvérsia, o ponto principal se referia à relação entre as naturezas divina e humana em Cristo; na outra, à relação entre graça de Deus e o livre arbítrio do homem. Tal como Atanásio ensinara que Cristo é verdadeiro Deus, de modo que a obra que realizou é a própria obra de Deus, assim também Agostinho ensinou que é tão-somente a graça de Deus que opera a salvação dos homens. Mas para Agostinho isto não era questão puramente teológica; tinha também reflexos antropológicos. Na teologia ocidental a doutrina de pecado e graça, bem como a doutrina da igreja, chegaram a ocupar o lugar central de interesse.

A controvérsia com o pelagianismo dizia respeito, em sua maior parte, aos seguintes pontos: O livre arbítrio, o pecado original, a conquista da salvação, graça e predestinação.

Considerada de um ponto de vista, toda esta faceta da teologia de Agostinho constitui uma descrição do homem e de usa posição face a Deus. Ao mesmo tempo, no entanto, a antropologia teológica de Agostinho também foi inserida em sua doutrina do plano da salvação. Dá atenção especial à maneira como Deus trata com o homem e as várias condições do homem, nesta sequência de eventos, que é descrita como o plano de salvação que Deus tem para o mundo. Afirmações relativas ao livre arbítrio e à obra da graça são condicionadas pelas várias etapas em que o homem se encontra em seu desenvolvimento, desde a criação até a perfeição. Agostinho distingue quatro dessas etapas, uma vez que fala do homem ante legem, sub lege, sub gratia e in pace ( ou, em terminologia mais recente “antes da queda; depois da queda; depois da conversão; e na perfeição”

No assim chamado estado original, isto é, quando o primeiro homem foi criado, ele possui medida completa de liberdade. Tinha então livre arbítrio não somente no campo da ação; também era capaz de escolher entre o bem e o mal. Em outras palavras, o homem então possui liberdade no sentido formal, bem como a capacidade de escolher o bem. Esta espécie de liberdade implicava, portanto, na capacidade de evitar o pecado (posse non peccare ) . Esta capacidade não pertencia ao homem por causa de seus dons naturais; pertencia-lhe somente por causa da ajuda da graça divina. Era apenas a prima gratia que dava ao homem a liberdade de escolher o bem.

Mas a liberdade encerra a possibilidade de uma queda, e o primeiro pecado foi ocasionado pelo livre arbítrio. A queda significa que o homem, em espírito de arrogância, afastou-se de Deus e se colocou na direção do mal. A caritas foi substituída pela cupiditas na vida do homem. O homem perdeu assim a dádiva da graça, e com ela a liberdade que constituía a capacidade de escolher o bem. Pois quando a graça foi perdida, alterou-se a natureza humana. A razão e a vontade não mais controlam os poderes inferiores da alma; por outro lado, estes poderes assumiram posição dominante, e o homem, como resultado, viu-se enredado nas malhas do desejo e guiado pela concupiscência. Esta condição ele é incapaz de mudar. Em ocasiões isoladas a vontade, apesar disso, permanece a mesma. O homem é incapaz de livrar-se da servidão à concupiscência, porque nesta situação o mundo é o objetivo primordial de sua vontade, e não Deus.

A queda, portanto, significa que o homem perdeu a liberdade de escolher o bem. Como consequência, o homem agora sente-se impelido a pecar ( necessitas peccandi ). Seu posse non peccare trnsformou-se em non posse non peccare. Aqui Agostinho opo-se a Pelágio. Agostinho negava que o homem, depois da queda, continuava possuir livre arbítrio no verdadeiro sentido, a saber, a liberdade de escolher o bem. Em vez disso, está sob o impulso de pecar, o que quer dizer que age de tal maneira que a corrupção é inevitável. Boas obras isoladas podem ser realizadas, mas estas não modificam a intenção má de sua vontade. Ao mesmo tempo, entretanto, Agostinho não negava a liberdade em sentido formal. Seu conceito não é determinista. O homem age livremente. Mas devido à sua condição, o homem só está livre para pecar. Em outras palavras, sua liberdade é muito limitada, ou corrompida. A tendência do homem de escolher o mal determina o curso de sua conduta e o impede de fazer o bem. Realmente, o homem está livre no que concerne a ações individuais. Ao mesmo tempo, entretanto, sua atitude básica, moldada por sua vontade é algo que não pode mudar – e, até esse ponto, não é livre.

As más Tendências volitivas do homem se expressam como concupiscência, ou desejo. Mas ao mesmo tempo, o primeiro pecado foi ofensa (culpa) com a qual o homem incorreu em culpa perante Deus> Por esta razão, o pecado original implica numa condição perpétua de culpa (reatus). É esta culpa que é a essência do pecado, ou que torna o pecado pecado (seu formale ) . A culpa herdada é removida pelo batismo, de modo que o pecado original não é mais contado como pecado. Apesar disso, a condição pecaminosa permance, mesmo depois do batismo; a concupiscência atribuível à influência do pecado original, ainda está presente. A própria natureza humana é prejudicada pela corrupção implícita no pecado original; ela é como resultado, uma “natureza viciada pelo pecado”. O pecado não é simplesmente uma série de ações voluntárias isoladas; é corrupção real da natureza, resultante do fato a própria direção da vontade está deturpada. Lutero enfatizou isto dizendo que o pecado não só restringe as ações externas; descrença e inimizada contra Deus constituem sua essência. De modo semelhante, Agostinho descreveu o pecado como perversão da vontade. Nisto vemos o principal ponto de conflito entre ele e Pelágio.

O pensamento que o pecado está implícito na natureza humana é sugerido pela própria idéia de ser corrupção herdada. O primeiro passo em falso resultou do livre arbítrio do homem. Mas toda a raça humana esteve envolvida na queda de Adão. O Adão bíblico é o “homem” em geral; todos estão representados nele, de modo que todos os seus descentes formam uma unidade com ele. Como resultado, todos participam na culpa de Adão mesmo que a presença do pecado original no indivíduo não dependa de um ato da vontade; está presente antes que a vontade comece a se manifestar. A condição de culpa é herdada, e é removida do indivíduo através do batismo.

Assim também acontece com a corrupção humana; ela igualmente é herdada, como resultado da desobediência de Adão. Isto que dizer que é propagada de modo real de uma geração à seguinte. Agostinho acreditava que, com a propagação natural, também os maus desejos passavam de uma geração à seguinte. Deste modo, a humanidade tornou-se uma massa perditionis. Toda a raça humana é escrava dos desejos e afligida com a corrupção que deles resulta.

Além disso na opinião de Agostinho, nossa condição pecaminosa herdada também nos torna culpados perante Deus; com base no pecado original, o homem é digno da condenação divina. Ã luz disso, Agostinho concluiu que crianças não batizadas estão sujeitas ã condenação. A teologia católica romana posterior abrandou esta afirmação de várias maneiras, e mesmo Agostinho sugeriu que as orações da família podiam, em alguns casos substituir o batismo. O conceito de pecaminosidade herdada foi muitas vezes mal entendido. Naturalmente não significa que se nega que as crianças sejam inocentes do ponto de vista meramente humano. Não é questão de pecado atual; antes, indica uma condição na qual o homem se encontra como resultado da perversão de sua vontade. A doutrina do pecado original também supõe unidade da raça humana em Adão. Pois, caso contrário, como podia ser atribuída culpa ou responsabilidade a um indivíduo por algo que não fez? A posição agostiniana nesta questão não distingue entre crianças e adultos; a mesma ofensa se aplica a todos. Imaginar que o pecado original impõe culpa é igualmente difícil em ambos os casos. Deve-se pressupor além dos limites do conhecimento empírico e, portanto, não pode ser apreciado do ponto de vista da experiência que a razão tem a seu dispor.

Em sua doutrina do pecado original, agostinho descreve o pecado como condição que abrange todo o homem; não se trata apenas de ações isoladas. O pecado é um afastar-se de Deus por parte da vontade do homem . Isto implica em afirmar que o mal é algo negativo, sem substância, e desligado da comunhão com Deus, mas ao mesmo tempo, algo que implica em culpa e produz depravação em termos bem concretos.

Em conexão com este conceito de pecado, é lógico concluir que, depois da queda, a vontade do homem tornou-se incapaz de fazer o bem. Na realidade, o homem pode ocasionalmente fazer aquilo que é bom e útil aqui na terra. Mas enquanto a perversão da vontade domina, isto não pode ser verdadeiramente bom, pois o próprio homem permanece mau, e suas ações se dirigem àquilo que conduz à corrupção. Esta doutrina do servo arbítrio ( que não deve ser confudida com o determinismo) significa que o homem é incapaz de cooperar de cooperar no interesse de sua salvação.

Aquilo que é a única fonte de salvação humana, a graça de Deus, foi revelado na obra de Cristo. Ele fez expiação pelos nossos pecados, e por intermédio da fé nele o homem pode participar da graça. Este é o único caminho à vida reta: “O que a lei ordena, a fé realiza”. A função da graça consiste, em parte, no perdão dos pecados e, em parte, na regeneração.

Através da obra de mediação realizada por Cristo, a comunhão com Deus, que fora perdida, foi restaurada. A culpa é removida pelo perdão dos pecados, e o homem recupera a vida espiritual que foi perdida na queda. Na opinião de Agostinho, a salvação se encontra no perdão dos pecados, e a graça é a vontade misericordiosa de Deus que opera o perdão.

Mas a graça não apenas remove o pecado; também efetua a regeneração do homem. A natureza humana realmente encontra-se depravada por causa do pecado. Este mal só pode ser curado pela graça. A vida retorna quando é restaurada a relação do homem com Deus. A graça cria nova vontade no homem. Isto implica numa “infusão de amor”. A má vontade, orientada em direção ao mundo, é substituída pela boa vontade, pela caritas. Como resultado, o homem pode obedecer aos mandamentos de Deus; anteriormente, era incapaz de fazê-lo. Sua liberdade, isto é, sua capacidade de fazer o bem é restaurada. Enquanto durar a vida terrena, esta liberdade é mero início. Pois, nesta vida o homem deve lutar contra o desejo e só é restaurado gradualmente. O que pode produzir o bem no homem? Apenas o amor, a nova vontade. Sem o auxílio da graça, o homem nunca pode fazer o bem. Como resultado, o cumprimento da lei, que Deus exige, só é possível quando Deus mesmo fornece o poder. “Dá o que ordenas, e ordena o que quiseres”. Tal amor vai de mãos dadaa com a fé. Crer em Deus é amá-lo e esperar vê-lo um dia. Fé, esperança e amor pertencem juntos; são as virtudes essenciais do cristianismo.

A salvação resulta do perdão dos pecados, mediante a fé, independentemente de mérito humano. Nada há que o homem possa fazer de si mesmo para realizar esta salvação. Este foi o principal argumento de Agostinho contra Pelágio; Agostinho tomou esta idéia básica de Paulo, cuja doutrina da justificação pela fé teve influência decisiva sobre Agostinho. A vontade do homem é incapaz de fazer o bem e, portanto, a salvação deve ser obra do próprio Deus. Mas, para Agostinho, graça inclui a regeneração do homem. A vontade do homem se altera, o amor é derramado nele; como resultado disto, o homem pode fazer verdadeiramente o que é bom e pode tornar-se cooperador de Deus na fé. Encarado de certo modo, Agostinho parece dizer que esta regeneração é o alvo. O amor a Deus (caritas) é o pressuposto da salvação do homem. Esta interpretação de Paulo é um tanto diferente da dos reformadores. Segundo Lutero e tradição luterana, é apenas a fé em Cristo e seus méritos que justifica o homem; as obras humanas não têm lugar. Agostinho igualmente dizia que o homem é salvo pela fé, mas esta fé também pratica o bem; relaciona-se com caritas e se expressa através dela. Ações que se originam no amor são consideradas meirtórias e eventualmente serão recompensadas. Mas Agostinho também enfatiza, ao mesmo tempo, que tal mérito só pode ser conquistado pela graça. Disse ele: “Quando Deus recompensa nossos méritos, está realmente recompensando suas próprias dádivas”. (Epistola 194.19).

Agostinho, entretanto, não diz que a graça que perdoa é a única causa e pressupostos da salvação; também reconhece a importância do amor que Deus derrama no coração do homem. A base real da salvação é tão somente a graça (e não o livre arbítrio do homem), mas o que se destaca na obra da graça não é tanto a justiça “alheia” de Cristo que é imputada a nós, mas antes a transformação que ocorre na vida do indivíduo renascido por causa do amor de Deus que foi derramado nele.

A oposição de Agostinho a Pelágio expressou-se mais fortemente em sua doutrina da presdestinação . A graça, que é a única fonte da salvação do homem, é a vontade misericordiosa de Deus; ela é, ao mesmo tempo, onipotente. A onipotência desta graça significa que a salvação do homem depende apenas da vontade e do decreto Deus. Deus, na eternidade, escolheu certos homens para serem arrancados da massa corrupta e para participarem de sua salvação. A obra da graça no plano da salvação, portanto, é a execuçao, no tempo, do decreto eterno, oculto, de Deus. Agostinho baseou esta conclusão em Rm 8.30: “E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou”.

O fundamento decisivo da salvação humana, portanto, não se encontra em nossos méritos ou no livre arbítrio, mas, invés disso, na vontade de Deus. Para Agostinho, isto significava que os que foram escolhidos um dia serão salvos. Não se pode imaginar que venham a cair novamente aqueles que uma vez chegaram a crer. A graça os supre não apenas com a fé mas também com o dom da perseverança. Esta linha de pensamento fez surgir a teoria denominada “graça irresistível”; o termo, em si, só foi usado mais tarde. Agostinho acreditava até que os predestinados podem existir fora da igreja. Essas pessoas, sustentava, seriam salvas pelo poder da graça que operaria sem os meios ao nosso dispor.

Agostinho também concluiu nesta conexão que se alguém não é salvo, isto igualmente tem sua origem na vontade de Deus; Deus não desejou a salvação de tal pessoa. Pois nada pode ser feito sem a vontade e o poder de Deus. Como pode relacionar-se esta idéia com a passagem: “Deus é amor? Tais questões não podem ser respondidas. As palavras de I Tm 2.4: “Deus deseja que todos os homens sejam salvos” ( que têm sido difícil para todos que ensinam a dupla predestinação), foram interpretadas por Agostinho como referindo-se apenas a todas as “classes” ou “espécies” de homens.

A doutrina da predestinação de Agostinho representa a consequência final de sua doutrina que a graça é a única fonte da salvação dos homens. A teologia posterior, em geral, não seguiu em tais conclusões. As doutrinas da graça irresistível e da dupla predestinação, na maioria das vezes, foram rejeitadas. Todavia estas idéias continuaram a fornecer uma antítese vigorosa às tendências pelagianas, e foram aceitas por teólogos que desejavam ficar fiéis a Agostinho neste ponto.

Melhor do qualquer outro “latino” , Agostinho sintetizou a cultura da antiguidade e fundiu essa herança com a teologia cristã. Realizou, portanto, uma síntese entre herança filosófica da antiguidade e o cristianismo, mas também contribuiu com algo de novo e original de sua própria personalidade. Ao mesmo tempo que estava profundamente enraizado na antiguidade e na tradição cristã, exerceu também impacto criador tanto sobre a teologia como sobre a filosofia. Representava uma cultura que estava no acaso – a romana mas ao mesmo tempo suas idéias serviram de base para a época que estava surgindo. Nos séculos seguintes, os teólogos continuaram a enfrentar os problemas que Agostinho propusera, a cultivar suas idéias, ou a usar suas obras como fonte de referência. Nos pensamentos de Agostinho de Hipona encontram raízes as tendências da escolástica bem como as dos místicos, as da política eclesiástica papal e ainda as de reforma da Idade Média.

Nenhum comentário:

Postar um comentário