segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A TEOLOGIA DE LUTERO - PARTE 2


PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DA TEOLOGIA DE LUTERO

a) Hermeneutica – A teologia de Lutero é a teologia da palavra. “E assim, á fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo”(Rm 10.17). Estas palavras paulinas tiveram significado fundamental para a Reforma Protestante. A Palavra divina, que cria a fé, destaca-se ao mesmo tempo o fundamento da teologia. A autoridade da escritura certamente fora enfatizada antes disso – e notadamente na tradição ocamista – mas quando Lutero se referia à Escritura como a Palavra divina, trazida ao homem através dos apóstolos e profetas, falava com nova convicção referente à posição fundamental e inalienável da palavra. O que havia de novo na atitude de Lutero face à Escritura era especialmente sua percepção mais profunda com respeito ao seu conteúdo. Além disso, Lutero reconhecia que a autoridade da Palavra era válida mesmo quando a tradição divergia dela; que sua autoridade mantinha cativa a consciência. Por último, os princípios de interpretação também foram completamente transformados na exposição bíblica de Lutero.

Cristo é o centro da Bíblia. “A Escritura deve ser entendida a favor de Cristo, não contra ele; sim, se não se refere a ele não é verdadeira Escritura.” “Tire-se Cristo da Bíblia e que mais se encontrará nela?” Para se compreender a Palavra o essencial é aceitar as promessas do evangelho pela fé. Faltando esta fé, a Palavra divina não pode ser entendida corretamente. Com isso, Lutero afastou-se da interpretação legalista da Bíblia, que encontra na Escritura uma coleção de diferentes doutrinas e ordenanças, e do conceito “entusiasta”, intimamente relacionado com a outra, e cujos adeptos reivindicam possuir a “Palavra interna” como norma da interpretação da Bíblia. Por entender claramente o fato que a mensagem do evangelho é a faceta central do conteúdo da Escritura, Lutero possuía certa liberdade com respeito à análise dos pormenores da Bílbia, liberdade que não significa nada além do fato que o conteúdo central (o contexto total) da Bíblia é o fator determinante na interpretação dos pormenores. Isto de maneira alguma significa desafio à autoridade canônica da Escritura. A posição de Lutero foi algumas vezes interpretada para significar exatamente isto, mas tais conclusões são incorretas. Entender o sentido mais profundo pressupõe especificamente o que mencionamos – a obediência da fé á Palavra externa. A fé em si, portanto, baseia-se na validez incondicional da Palavra. Sua autoridade também se justifica por isto, que nós homens, por causa de nossa fraqueza, devemos estar ligados à Escritura como norma externa, obrigatória. “Para que a igreja não seja destruída, é necessário que mantenhamos firmemente os diferentes escritos e ordens dos apóstolos.” De acordo com outras afirmações de Lutero, os apóstolos são nossos mestre infalíveis em virtude de incumbência divina especial.

Em nossa relação com a Bíblia, portanto, tanto liberdade como sujeição permanecem de pé. Do ponto de vista da fé como tal, estamos livres com respeito a pormenores literais. A fé tem importância primordial na interpretação da Bílbia; isto significa que a Escritura deve ser entendida no espírito de Cristo e não legalisticamente. Mas do ponto de vista das condições sob as quais a fé chega a existir, estamos subordinados à Escritura como autoridade externa.

Muitas vezes se tem assinalado a assim chamada crítica de Lutero ao cânone (certas afirmações sobre a Epístola de Tiago, entre outras) como exemplo de sua liberdade face à autoridade da Escritura. Mas isto conduz a equívocos. Realmente Lutero não considerava o cânone do Novo Testamento como fixado de modo absoluto. Em sua opinião, quatro dos últimos livros do Novo Testamento ( Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse) eram apócrifos, ou escritos cuja autenticidade apostólica eram, acima de tudo, decisivos na determinação da canonicidade. Assim, por exemplo, o que a Epístola de Tiago diz sobre fé e obras é interpretado como indicação que a epístola não é nem apostólica e nem canônica. (Na tradição protestante, foi só na época de Gerhard que também os assim chamados antilegômena entre os escritos neotestamentários começaram a ser reconhecidos como verdadeiramente canônicos.)

Apesar de certas semelhanças, há grande contraste entre a interpretação da Bíblia feita por Lutero e a moderna interpretação histórica, mas este contraste tem sido frequentemente ignorado. É verdade, sem dúvida, que Lutero atribuiu a maior importância ao que ele denominou o sentido literal ou histórico da escritura. Mas com isso ele não entendia a interpretação histórica no moderno sentido do termo; foi antes uma percepção derivada do contexto da fé. Lutero acreditava, por exemplo, que o Antigo Testamento é testemunha direta de Cristo, e não simplesmente que contém algumas prefecias a respeito dele. A concepção da “História das religiões” sobre a interpretação da Bíblia era desconhecida naquela época.

A idéia que Lutero fazia do Antigo Testamento correspondia aos pensamentos que desenvolveu com respeito à relação entre lei e evangelho. A lei mosaica, no sentido jurídico, foi abolida por Cristo. Fora para os judeus o que as leis saxônicas eram para os alemães e, portanto, válida apenas para certo povo num tempo determinado. A lei, contudo, recebeu cumprimento mais elevado que a obediência externa aos mandamentos. Aponta ao evangelho e atinge seu cumprimento apenas através da proclamação da justiça pela fé em Cristo. A lei, portanto, é preservada, e como mandamentos de Deus, aos quais todos os homens estão sujeitos, é válida mesmo na era do Novo Testamento. Ao mesmo tempo, porém, podemos também ver o evangelho no Antigo Testamento. Cristo também está nele, não apenas como o futuro Messias, predito na lei e nos profetas, mas também como aquele que fala diretamente nos Salmos e através dos profetas.

A interpretação bíblica tradicional da Idade Média mantinha que a Escritura tem sentido quádruplo. Podia ser exposta literalmente, tropologicamente (isto é, com respeito ao cristão individual), anagogicamente (isto é, com respeito à eternidade) e também alegoricamente, o que significava que se podia, por exemplo, fazer a Palavra se pronunciar sobre realidade gerais no mundo da fé ou da igreja.

Lutero rejeitou tal estrutura. Em sua opinião, a escritura tem apenas um sentido próprio, o gramatical ou histórico. Naturalmente, também reconhecia a interpretação figurativa que se encontra na própria Bíblia, como por exemplo nos paralelos estabelecidos entre Cristo e certos personagens do Antigo Testamento (tipologia). Lutero também falou (especialmente em seus primeiros sermões) de um sensus spiritualis ou mysticus, que aponta diretamente à alegoria. Mas este ponto de vista recebeu posição subordinada. Não era fidedigno, e aparecia nos sermões de Lutero apenas como adorno tradicional da exposição da Escritura. Em anos posteriores, Lutero abandonou mais e mais essa espécie de interpretação da Bíblia.

No conceito de Escritura de Lutero há a idéia que a Bíblia pode ser entendida por si mesma, agindo cada pessoa como seu próprio intérprete. As interpretações da tradição ou do clero não são necessárias para a correta compreensão da Bíblia (como os tólogos católicos romanos diziam). A Palavra possui em si a “clareza externa” que ela transmite e administra através do ministério (in ministerio verbi). É por esta razão também que a Escritura - sem o acréscimo de mandamentos humanos e opiniões doutrinárias – é o único fundamento da fé.

A “clareza externa” da Palavra deve se distinguida da assim chamada “clareza interna”, que é o cerne da compreensão do conteúdo da Escritura. Esta chega a existir apenas por meio do Espírito Santo, que ilumina e instrui o homem internamente. Lutero também ressaltava o significado da experiência para a correta compreensão da palavra de Deus. A educação na fé, juntamente com a experiência que é dada quando se aplica a fé quando se passa por tribulações de vários tipos, é necessária para uma genuína percepção da palavra (a escola do Espírito Santo).

É característica da teologia da Reforma que a Palavra seja colocada no centro das coisas, não apenas como fonte de percepção da realidade sobrenatural, mas também como Palavra eficaz, criadora e vivificante, pela qual Deus julga e soergue. A fé se relaciona com a própria palavra, não simplesmente como uma realidade metafísica existente por detrás da palavra, e nela encontra a salvação. Nisto podemos ver um contraste fundamental entre a teologia da Reforma e a teologia escolástica.

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