A DOUTRINA DA JUSTIFICAÇÃO
De acordo com Lutero, há duas espécies de justiça, a externa e a interna. Aquela consiste de ações externas e é adquirida por meio de conduta justa. Ela também pode ser chamada justiça civil, pois trata do homem como membro da sociedade, ou de sua conduta em relação aos outros homens. Sua vida externa é declarada justa ou injusta.
A justiça interna, por sua vez, consiste de pureza e perfeição do coração. Como tal, não pode ser adquirida por meio de ações externas – da mesma forma que o homem não pode fazer-se a si mesmo Deus. Pois essa justiça vem de Deus apenas como dádiva, pela fé em Jesus Cristo. Esta justiça não é julgada diante dos homens mas perante Deus. Visto ser o homem pecador, não pode conseguir esta justiça por si mesmo. Ela contradiz a razão e ultrapassa tudo que pode conseguir esta justiça por si mesmo. Ela contradiz a razão e ultrapassa tudo que pode ser compreendido ou realizado por esforço humano. Esta justiça é adquirida pelo sofrimento e morte de Cristo, e é atribuída ao homem pela fé, independemente de qualquer mérito ou dignidade humanas. Deus declara o pecador justo por causa de Cristo. Essa justificação ocorre quando o homem se humilha perante Deus, reconhece que é pecador e clama por misericórdia e graça de Deus. Tal homem confessa que está cheio de pecado, mentiras, vaidade, incompetência e perdição, enquanto que Deus é tudo o que é bom. Nesta fé, e com tais orações, o coração do homem torna-se um com a justiça e virtude de Deus. Cristo torna-se sua justiça, sua santificação, seu livramento. Esta é a justiça interna (justita ab intra, ex fide, ex grata) apresentada de acordo com as palavras de Paulo: “Concluímos, pois, que o homem é justificado pela “fe, independemente das obras da lei.”(Rm 3.28).
Também notamos que, na doutrina da justificação pela fé da Reforma, o conceito de fé em si foi transformado. É grande a diferença entre ele e o conceito paralelo ensinado pela teologia da escolástica.
Na tradição do escolasticismo, falava-se de fé como algo concebível ao nível da razão, que podia ser adquirido mediante instrução e pregação (fides acquisita). Distinguia-se esta da fé infusa (fides infusa), que é dom da graça e implica em completa adesão a toda verdade revelada. Lutero rejeitou esta distinção: A fé que “vem pela pregação” coincide com a que justifica (de acordo com rm 3.28); é inteira e totalmente dom de Deus, “fé verdadeiramente infusa” ( fides vere infusa). A mente do homem não pode concebê-la, ela significa não apenas adesão intelectual às verdades da fé mas verdadeira comunhão com Deus, em que o homem coloca toda sua confiança em Deus e o encara como a fonte de todo o bem .
A fé justificante, em outras palavras, não é apenas conhecimento histórico do conteúdo do evangelho; é a aceitação dos méritos de Cristo. A fé, portanto, é confiança na misericórdia de Deus por causa de Cristo. Nesta conexão, Lutero cunhou a expressão fides aprehensiva Chrusti. O fator decisivo é que o evangelho da vitória de Cristo sobre o pecado e a morte é recebido como verdade salvadora e vivificante. “A fé adquirida bem como a fé infusa dos sofistas diz de Cristo:’ Creio no Filho de Deus, que sofreu e ressuscitou’, e ai termina. Mas a verdadeira fé diz: ‘Certamente creio no Filho de Deus que sofreu e ressuscitou; estou certo de que ele fez tudo isto por mim, por meus pecados...’Este ‘por mim’ ou ‘por nós’ - quando é abraçado com fé – é a marca da fé verdadeira; esta é diferente de todos os outros tipos de fé, que apenas ouvem falar de coisas que aconteceram. Tal como Lutero a entendia, a fé não é apenas em conjunto de conhecimentos; é um poder vivo: “Que torna Cristo ativo em nós, opondo-se à morte, ao pecado e à lei.”
O conceito sola fide luterano igualmente deve ser entendido à luz do que foi dito. Também aqui a oposição de Lutero à escolástica se faz presente. Em anos anteriores os teólogos tinham falado, com base em gl 5.6, que a fé não era por si só suficiente para a justificação. A fé só poderia agradar a Deus caso estivesse associada a ações de amor.
Lutero demonstrou que a passagem paulina citada acima não se refere à justificação mas à vida cristã como um todo, que claramente se caracteriza pela fé ativa em amor. A justificação em si, por outro lado, é tão-somente obra da fé. Ocorre não com base no mérito humano, mas apenas por causa da justiça de Cristo, que nos foi atribuída. E a fé, como já dissesemos, é a aceitação das obras substitutivas de Cristo como tendo sido realizadas por nossa causa. A fé une o homem a Cristo, de modo que “Cristo vive em seu coração pela fé”. A fé, portanto, não é função “inerte” da alma, que deve ser aperfeiçoada pelo amor. É em si ativa, um poder vivificador, que incessantemente só pode fazer o bem.
Em sua descrição da fé, Lutero citava o exemplo de Abraão apresentado em Rm 4: “Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça.” Em conexão com isso, é costume falar-se em justiça imputativa como característica da teologia da Reforma. A justiça à qual aqui se faz referência não é qualidade inerente ao homem. O homem é declarado justo pelo próprio decreto de Deus. E isso acontece não com base em qualquer qualidade ou mérito do próprio homem, mas por causa de Cristo (propter pode ser justificado. E com isso voltamos ao ponto de partida, a justiça em questão só pode chegar ao homem como dádiva, como aliena justitia, isto é, não é nossa própria justiça mas a de Cristo, que nos é imputada pela fé.
Mas, este assim chamado conceito de imputação não deve ser interpretado como se referindo apenas a uma forma externa de julgamento. Pois foi precisamente neste contexto (como vimos) que Lutero falou de própria Palavra viva e criadora de Deus, que providencia o novo nascimento e transforma o homem por completo. Portanto, não há contradição (como alguns querem e a idéia da fé como poder vivo, que age. Pois o Espírito Santo é dado com a fé, e opera aquilo que é bom, e mediante o amor cumpre a lei.
A doutrina de Lutero referente a fé e obras tem suscitado muitos mal-entendidos. Por exemplo, ouve-se dizer que o conceito sola fide luterano significa que as boas obras perderam seu significado correto. Um relance ao pensamento de Lutero sobre o assunto revelaria, no entanto, que tais conclusões não estão de acordo com seus princípios.
A fé e o amor relacionam-se um com o outro como lei e evangelho, ou como as naturezas divina e humana em Cristo. Podem certamente ser distinguidas uma da outra, mas não podem ser separadas. A justiça da fé diz respeito ao homem em sua relação com Deus (coram Deo). A justiça das boas obras ou amor, diz respeito, por sua vez, ao homem em sua relação com seu (coram hominibus). Estas duas não devem ser confundidas a ponto de procurar o homem justificar-se à vista de Deus devido a suas obras, nem de tal maneira que tentará ocultar o pecado com a graça. Ambos seriam sinais de fé falsa. Disto decorre que fé e obras podem ser separadas enfaticamente, mesmo até podem ser designadas como opostos incompatíveis; mas ao mesmo tempo também é verdade que estão intimamente relacionadas.
Com respeito à justificação em si, as boas obras devem ser tão claramente distinguidas da fé como possível. Pois esta só diz respeito à fé. Como Lutero o expressou, não se deve permitir que a lei force seu ingresso na consciência. O homem que foi esmagado pela lei, e reconhece ser pecador, pode ser soerguido tão-somente pela fé. Deve contemplar a cruz de Cristo, e não a lei ou suas próprias obras, como se elas pudessem fazer satisfação por seus erros. Neste ponto, portanto, a fé e as obras se excluem mutuamente.
Mas quando se observa a vida concreta do cristão na sua totalidade, pode-se ver que fé e obras, pois constantemente faz o bem. Como resultado, podemos falar das obras, pois constantemente faz bem. Como resultado, podemos falar das obras de maneira tal que a fé seja pressuposta por elas e incluída nelas. Quando a Bíblia por exemplo, se refere às obras da lei, a exigência básica é a fé. Pois sem fé ninguém pode cumprir a lei ou fazer o bem. Em vista disso é que a exigência de boas obras pressupõe fé.
Semelhantemente, pode-se falar da fé de tal maneira que as boas obras sejam incluídas no próprio conceito de fé. A fé é assim considerada em seu sentido concreto, como fé encarnada nas obras de amor. Mas isto não significa que o amor enforma a fé, como os escolásticos diziam; pelo contrário, é a fé que enforma o amor. Isto quer dizer que apenas a fé torna boas as nossas ações. Usando outra expressão, a fé é a natureza divina das boas obras. Mas quando outra expressão, a fé é a natureza como um todo, fé e amor pertencem juntos e não podem ser concebidos separadamente; pois a fé toma forma em amor, e o amor torna-se o que é através da fé.
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