segunda-feira, 23 de novembro de 2009

LUTERO E VISÃO ANTROPOLÓGICA - Parte 5

A ANTROPOLOGIA DE LUTERO

Depois de receber o grau de Mestre na Universidade de Erfurt, em 1505,Martinho Lutero entra para Ordem Agostiniana e logo é ordenado sacerdote(1507). De 1508 a 1546 ensina na Universidade de Wittenberg, onde em 1512, recebeu o grau de Doutor em Teologia. Esse título lhe deu oportunidade de tornar-se professor de Teologia Bíblica, a cuja tarefa dedicou-se de corpo e alma.

O estudo da Bíblia acentuou sua luta espiritual, e, levado por experiências pessoais traumáticas, é perseguido por grande sentimento de culpa e pela idéia quase obsessiva de condenação. Seu problema espiritual prendia-se a questão da ambiguidade da natureza humana, o problema do bem e do mal no interior do homem. Neste período fez preleções sobre os Salmos, Romanos, Galátas e Hebreus. Graças ao estudo, principalmente das epístolas de Paulo aos Romanos e aos Gálatas, Lutero descobriu a mensagem sobre a graça de Deus e se convenceu de que o homem é justificado pela fé, encontrando, nessas doutrinas, a tranquilidade para seu espírito angustiado. O texto básico dessa descoberta foi Romanos 1.17: “Porque no evangelho é revelada, de fé em fé, a justiça de Deus, como está escrito: mas o justo viverá da fé”, que é uma citação do profeta Habacuque, no capítulo 2 e versículo 4: “...mas o justo pela sua fé viverá”.

Por algum tempo Lutero envolve-se na atividade de pregador, e em 1515 torna-se prior de sua Ordem, função que o leva à prática de atividades pastorais.

Depois de observar o que considerava errado na sua igreja, e com o propósito de corrigir distorções e anunciar a verdade, Martinho Lutero escreveu 95 teses, que apôs à porta da Igreja de Todos os Santos, em Wittenberg, em 31.10.1517. Essas teses eram opiniões sobre as quais (pelo menos algumas delas) Lutero ainda não tinha convicções profundas. Por exemplo, não negavam as prerrogativas do papa, mas criticavam seu método autoritário. Não criticavam doutrinas estabelecidas, como o purgatório, mas davam ênfase ao caráter espiritual e subjetivo ou interior da religião cristã.

Estava assim lançada a semente da Reforma Protestante, que, graças à descoberta da imprensa e pela adoção do estilo panfletário de seus mentores, difundiu-se rapidamente pelo continente europeu. Lutero foi um prolífero escritor. Seus livros incluem comentários da Bíblia, obras polêmicas e devocionais práticas. Sua mais notável contribuição, nentretanto, foi a traduçào da bíblia para o alemão, que, além de tornar a leitura das Sagradas Escrituras acessível ao povo, deu unidade à própria língua alemã e exerceu profunda influência sobre sua literatura.

Todo o pensamento teológico de Lutero parte do pressuposto teocêntrico e do princípio da autoridade única das Sagradas Escrituras. Seu pensamento antropológico, em particular, reflete a doutrina agostiniana.

O homem, imagem de Deus. Lutero retorna às raízes da antropologia da fé bíblica e rejeita o dualismo medieval, que separa a alma do corpo. Para ele, é no homem como um todo – físico e espiritual – que reside a imagem de Deus.

Em suas preleções sobre o livro de Gênesis, comentando o versículo 26 do primeiro capítulo, Lutero diz que a expressão bíblica: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme nossa semelhança”, significa, em primeiro lugar, a diferença fundamental que existe entre o homem e os outros animais. Apesar dos pontos em comum com os outros animais, como a necessidade de se alimentar, dormir, etc, o autor sagrado indica que o homem foi criado segundo um plano especial e uma providência especial de Deus. A expressão bíblica indica que o homem é uma criatura muito superior ao resto dos seres vivos, especialmente quando considerado em seu estado antes da “Queda”.

Segundo Lutero Adão, em seu estado original, precisava alimentar-se e podia procriar. Mas, num dado momento, depois de completado o numero dos santos, essas atividades físicas terminariam, e ele, juntamente com seus descendentes, seriam transladados para a vida eterna. As atividades da vida física, como comer, beber e procriar, teriam sido exercidas para agradar a Deus e seriam isentas da concupiscência que nelas existem existe, depois do pecado.

O “façamos” do texto de Gênesis, segundo Lutero, indica o caráter trinitário da criação do homem. Na divindade e na Essência Criativa há uma plenitude eterna e inseparável. Mas, o que significa a imagem de Deus na qual o homem foi criado?

Lutero apresenta em resposta a essa pergunta, em primeiro lugar, o ensino de Agostinho, que usa a classificação aristotélica, segundo a qual a imagem de Deus no homem representa as faculdades da alma – memória, intelecto e vontade.

Outros, diz Lutero acreditam que a semelhança quer dizer os dons da graça. Assim como a semelhança é uma certa perfeição da imagem, assim também a natureza humana é aperfeiçoada pela graça. Nisso, portanto, consiste a semelhança de Deus no Homem: a memória provida de esperança, o intelecto. De fé, e a vontade, de amor. Neste sentido, dizem alguns doutores da igreja, o homem foi criado à imagem de Deus; isto é, ele tem intelecto, memória e vontade. De igual modo, o homem é criado à semelhança de Deus, isto é, o intelecto é iluminado pela fé, a memória torna-se confiante através da esperança e da perserverança, e a vontade é adornada pelo amor. Alguns desses autores fazem, também, a divisão da seguinte maneira: a memória é a imagem de sua justiça. Agostinho e seus seguidores, portanto, apresentam essas diferentes trindades no homem como forma de explicação da imagem de Deus nele.

Lutero faz restrições a essas especulações. Advoga que a perda dessa imagem, pelo pecado, torna sua compreensão impossível. Nós temos, de fato, memória, intelecto e vontade, mas se encontram comprometidos por causa do pecado. Se são essas faculdades da alma que constituem a imagem de Deus no homem, temos de admitir que Satanás também foi criado à imagem de Deus. Visto que ele tem esses dons e até mesmo em grau mais elevado. A posição de Lutero sobre o assunto é expressa nas seguintes palavras:

“Portanto, a imagem de Deus, segundo a qual Adão foi criado, é algo muito mais excelente, visto que obviamente nenhuma lepra do pecado havia aderido à sua razão ou à sua vontade. Tanto as suas sensações internas quanto as externas eram da mais pura qualidade. Seu intelecto era o mais lúcido, sua memória era a melhor e sua vontade era a mais reta – tudo na mais bela tranquilidade -, sem qualquer temor da morte e sem qualquer ansiedade. A essas qualidades interiores eram acrescentadas as mais belas qualidades do corpo e de todos os seus membros, qualidades nas quais excedia a todas as outras criaturas. Estou convencido de que antes de pecar os olhos de Adão eram tão aguçados e claros que podiam superar os da águia ou os do lince. Ele era mais forte do que os leões e os ursos, cuja força é realmente grande, e ele os dominava como se fossem objetos de brinquedo. Tanto o sabor com a qualidade dos frutos que comia eram superiores aos que têm agora” (Lectures on Genesis, cap. 1 a 5, p.62).

Outra demonstração da antropologia holística de Lutero é sua rejeição do mero conceito de imortalidade da alma, é uma idéia que o cristianismo herdou do helenismo, em favor de uma ressurreição do corpo, que dará unidade ao homem e que representa o ponto de vista do Antigo Testamento.

Outro ponto interessante do pensamento antropológico de Lutero é o que se refere ao pecado original. De acordo com a doutrina agostiniana, Lutero acredita que o pecado de Adão foi transmitido a seus descendentes. O texto básico, em que apóia a doutrina do pecado original, é o de Paulo aos Romanos 5.12: “Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porquanto todos pecaram”

Lutero diz que o pecado original não é apenas a falta de determinada qualidade da vontade, como queriam alguns teólogos escolásticos apoiados em Aristóteles, e não apenas a falta de luz no intelecto ou de poder da memória, mas ele é a falta total de justiça e de poder de todas as faculdades do corpo e da alma e da totalidade do homem interior e exterior. E acrescenta: “Em cima de tudo isso, o pecado original é a inclinação para o mal, como está escrito no Salmo 14.3: “Desviaram-se todos e juntamente se fizeram imundos”; e em Gênesis 8.21: “... porque a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice...”(lectures on Romans, p. 2999).

E, comentando a última parte do versículo – “porquanto todos pecaram” – Lutero cita um texto d Agostinho, em que diz: “É certamente claro e óbvio que pecados pessoais, em que somente aqueles que o cometeram estão envolvidos, são uma coisa, e que este pecado do qual todos participam à medida que estavam neste homem (Adão) é bastante diferente” (De peccatorum meritis remissione, 1.10,11). E acrescenta:

Desta afirmação de Agostinho se conclui que pecado original é o primeiro pecado, isto é, a transgressão de Adão. Pois ele interpreta a expressão “todos pecaram” com referência a algo realizado e não e não apenas com respeito à transmissão da culpa. Agostinho continua: “Mas se a referência á àquele homem e não ao pecado, e que todos pecaram neste homem, o que poderia ser mais claro do que esta expressão”. Mas a primeira interpretação é melhor em vista do que se segue, pois mais adiante o apóstolo diz: “Porque assim como pela desobediência de um só homem muitos foram constituídos pecadores”(v.19), e isto é o mesmo que dizer que todos pecaram. Assim, em Isaías 43.26, 27” (...) apresenta as tuas razões, para que te possas justificar! Teu primeiro pai pecou (...)” o que significa dizer: não podes ser justificado porque és filho de Adão, que primeiro pecou. Portanto, és também pecador, porque és filho de um pecador; e um pecador não pode gerar algo senão a um pecador igual a ele (Lecture on Romanos, p.302).

E, suas Preleções sobre Gênesis, Lutero define claramente sua posição sobre o pecado original, ao declarar:

O pecado significa, de fato, que a natureza humana caiu completamente; que o intelecto se obscureceu de tal forma que não mais conhece a Deus e a sua vontade e não mais percebe as obras de Deus; além disto, significa que a vontade é extraordinariamente depravada, de tal forma que não confiamos na misericórdia de Deus e não tememos mas somos indiferentes à Palavra e à vontade de Deus, e seguimos os desejos e impulsos da carne; de tal maneira que nossa consciência não é mais tranquila, quando pensa sobre o juízo de Deus, desespera e adota defesas e remédios ilícitos (...) Assim como acontece com correlativos, o pecado original mostra o que é a justiça e vice-versa; o pecado original é a perda da justiça original, ou a privação dela, exatamente como a cegueira é a privação da luz (p.19).

Para Lutero, a Queda corrompeu a razão humana. Daí seu combate a Erasmo, que advogava que a razão humana tem o poder de compreender Deus, sem o auxílio de uma Revelação. Em seu ensaio Servidão da vontade, expõe seu ponto de vista sobre o assunto e combate as teses humanistas de Erasmo. Nesse mesmo ensaio, discute o problema do livre-arbítrio, por ele negado, como sugere o próprio título da obra em latim: : De servo arbítrio (1525). Para Lutero, nem mesmo Adão, antes de pecar, possuía o livre arbítrio. Somente Deus é livre. Eis um texto sobre o assunto “Segue-se, portanto, que ‘livre arbítrio’ é um termo aplicável exclusivamente à Majestade Divina... Se atribuíssemos o livre arbítrio ao homem estaríamos lhe atribuindo divindade, o que seria uma blasfêmia inominável” (Bondage of will, p. 105).

Segundo o ensino de Martinho Lutero, o homem, depois da Queda, tornou-se servo de Satanás. “Numa palavra, se estamos sob o domínio do deus deste mundo, estranhos à obra do Espírito santo, somos levados em cativeiro por ele e por sua vontade (...) de tal forma que não podemos querer nada além da vontade dele” (Bondage of will, p. 103). E, no mesmo texto, adota o pensamento de Agostinho e diz que a vontade do homem é como um animal entre dois cavaleiros: “Se Deus a conduz, ela irá para onde Deus deseja...Se Satanás a conduz, ela irá para onde Satanás deseja. A vontade do homem não escolhe o cavaleiro que a conduz, mas os cavaleiros batalham entre si para decidir quem a controla”.

Lutero ensinou também a doutrina da predestinação. Para ele, a eleição ou a predestinação do homem para a vida eterna não pode ser entendida pela razão humana; ela é simplesmente revelada e deve ser aceita como tal. Eis o que afirma um texto de Servidão da vontade:

Quanto ao motivo de alguns serem tocados pela Lei e outros não, de tal forma que uns aceitam e outros escarnecem a graça oferecida, é outra questão que Ezequiel não discute aqui. Ele fala da oferta anunciada da misericórdia de deus e não de augusta vontade oculta que, de acordo com seu próprio conselho, ordena tais pessoas como ele quer a receber e compartilhar a misericórdia pregada e oferecida. Essa vontade não deve ser questionada, mas reverentemente adorada como o mais terrível segredo da Majestade Divina(p.169).

Finalmente, o conceito luterano do homem, como sendo simultaneamente santo e pecador, revela o caráter dialético e paradoxal de sua antropologia. O homem, uma vez convertido a Cristo, descobre sua verdadeira natureza: Ele é, por natureza, totalmente pecador, mas em Cristo é completamente justo. Ele não é parcialmente uma coisa ou outra. Perante a Lei, o homem é sempre o pecador condenado, mas, em resposta ao Evangelho, totalmente justificado. Assim, na antropologia luterana, a dialética Lei-evangelho corresponde à dialética pecador-santo. Foi essa tensão que Lutero encontrou nas Sagradas Escrituras e confirmou em sua experiência pessoal, aceitando-a sem tentar explicá-la.

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