segunda-feira, 9 de novembro de 2009

LUTERO E A RELAÇÃO LEI E EVANGELHO - Parte 3




De acordo com uma das mais conhecidas expressões de Lutero, a divisão adequada de lei e evangelho é a arte mais elevada do cristão. Pode-se, com bom fundamento, fazer referência à dialética que Lutero tinha ai em mente como sendo fundamental para a sua teologia.

É possível obter-se a impressão, das muitas declarações significativas feitas, que lei e evangelho são duas categorias distintas e que na vida do cristão a ordem ou categoria da lei deve ser substituída pela ordem do evangelho. Lutero, entretanto, opunha-se tenazmente a essa interpretação (como ele fez ver claramente em seu conflito com os antinomistas, por exemplo). Pois assim como a lei nunca alcança seu cumprimento sem o evangelho, assim também o evangelho deve ser pregado juntamente com a lei; a lei serve de contexto. Sem a lei, perder-se-ia o sentido do evangelho. Como se poderia proclamar o perdão dos pecados sem a lei, que revela o pecado e acusa a consciência? Pois a medida em que a lei desmascara o pecado e condena o homem, também o impele a buscar a ajuda de Cristo (Rm 3.20; Gl 3.19,24). Assim acontece que lei e evangelho se encontram unidos desta maneira; condicionam-se mutuamente. Apesar disso é necessário (como já dito) claramente distinguir um do outro.

A lei nos diz o que devemos fazer, por causa do temor da punição. O evangelho, por seu turno, promete e proporciona o perdão dos pecados. Assim como é preciso diferenciar entre a justiça que é aceitável perante os homens e a que é aceitável perante Deus, assim também se deve distinguir entre a pregação da lei e a do evangelho. Uma das tarefas da lei é a de levar os homens a agir, a fazer o bem e evitar o mal. Deste modo inclui toda a ordem e atividade públicas nos diferentes momentos da vida. Lutero denominou este o uso civil da lei (usus legis civilis). Mas quando se trata da relação do homem para com Deus – sua justiça num sentido mais elevado – a tarefa da lei é completamente diversa. A lei não pode produzir uma boa obra sequer e o homem é por ela encaminhado à palavra do evangelho, que lhe oferece o perdão dos pecados por causa de Cristo. Neste contexto, a função da lei é simplesmente a de revelar o pecado e tornar real a ameaça da ira – a ira sob a qual o homem se encontra por causa de sua natureza pecaminosa. Lutero denominou isto o uso teológico ou espiritual da lei (usus theologicus seu spiritualis).

Lei e evangelho caracterizam duas espécies de pregação, que agem simultaneamente: a lei acusa e julga, enquanto o evangelho suscita a fé no coração e assim soergue o homem e o recria para que possa principiar a amar a Deus e a seu próximo – isto é, para que possa viver dentro do estado de espírito que o mandamento do amor exige.

Foi a obediência à lei e evangelho que produziu a forma gradualmente que substituiu o sistema institucional de penitência desenvolvido na Idade Média, cujo abuso Lutero atacou já nas Noventa e Cinco Teses de 1517. Alguns dos principais aspectos de sua crítica à doutrina romana de penitência se tornarão evidentes no que segue.

O arrependimento no sentido neotestamentário (metánoia) não é simplesmente uma ação penitencial temporário, assim como no sistema católico romano; é, antes, uma conversão que dura a vida inteira, sendo acompanhados pela morte do velho homem e pela participação na satisfação substitutiva de Cristo. Esta descoberta fundamental, já encontrada nas Noventa e Cinco Teses, gradualmente trouxe consigo uma transformação radical de toda a doutrina da penitência.

A espécie correta de contrição não é a que se ocupa apenas com ofensas isoladas, mas se encontra, em lugar disso, no coração quebrantado pela lei, quando revela que todos os homens se encontram sob a maldição do pecado. Como resultado, a contrição não é atividade meritória, mas a aceitação passiva da acusação da lei, que pressupõe fé no juízo que a palavra de Deus pronuncia sobre os homens pecadores.

Como consequência disso, a confissão dos pecados é algo completamente distinto da recitação, no confessionário, de todas as faltas que se cometeu, o que é exigência impossível de ser cumprida. Mas, além disso, o pecado consiste de ofensas isoladas; é a corrupção de toda a natureza humana, que só se reconhece quando a palavra de Deus é proclamada. Ao mesmo tempo, no entanto, Lutero continuou a ressaltar a grande utilidade da confissão privada. Mas recusou-se a crer que dar absolvição fosse privilégio sacerdotal. Considerava-o serviço fraternal que cada cristão tem o direito de prestar no esforço de fortalecer e confortar a consciência do penitente.

O perdão dos pecados não depende do mérito da contrição, e também não se deve fazê-lo depender da satisfação; é concedido ao fiel exclusivamente por causa da misericórdia de Cristo. A verdadeira “satisfação” encontra-se no sofrimento e na morte de Cristo, enquanto a exigência de fazer satisfação é contrária ao evangelho, como também o é o sistema de indulgências.

Nesta nova interpretação, o arrependimento não pode mais ser designado ação meritória. É, antes, o fruto da pregação de lei e evangelho. O juízo da ira realiza sua tarefa através da lei, acusando a consciência e mostrando ao homem que tudo nele é pecaminoso. A palavra do perdão é proclamada pelo evangelho, que desperta a fé na misericórdia e graça de Deus e transforma o homem de tal maneira que recebe nova mentalidade e o faz voltar seus olhos de si mesmo ao que Cristo é e faz. Entendido desta maneira, o arrependimento abrange a vida toda do cristão e descreve o que acontece quando a lei e o evangelho exercem sua influência e é produzida a justificação pela fé.

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